Julho de 1979, Belo Horizonte: o Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão, estava prestes a ver algo inédito. Não foi nenhuma partida memorável de Atlético X Cruzeiro. Muito menos uma exibição da seleção. A história, na verdade, aconteceu no estacionamento.
Ali, dezenas de jornalistas viram primeiro carro movido a álcool no mundo. Era o lançamento do Fiat 147 preparado para ser abastecido com o combustível derivado da cana. Quarenta anos depois, o G1 voltou ao ponto de partida desta história: a fábrica da Fiat em Betim, para dirigir um exemplar do primeiro lote de 147 a álcool.
O álcool (na época não se usava o termo etanol) foi a solução brasileira para driblar a crise do petróleo do início dos anos 1970. Mas o primeiro carro a álcool do país só viria 4 anos depois, em 1979.
Conheça o ´cachacinha´
A unidade histórica, com placas FO-0292, de Brasília, é preta com uma faixa branca na lateral. A sigla MF pintada nas portas identifica o carro como patrimônio do Ministério da Fazenda (hoje Ministério da Economia), onde serviu por quase 35 anos, encarregado de transportar documentos na capital do país.
O veículo, cujo velocímetro aponta pouco mais de 81 mil km – originais, é preciso ressaltar -, ainda pertence ao governo federal. Depois da aposentadoria, foram 5 anos de abandono até a Fiat localizá-lo e e firmar um acordo para cuidar do veículo – que não pode ser vendido, como diz a placa de ferro fixada no painel do 147.
Hoje, ele "mora" em Betim, junto com outro exemplar do compacto, também de 1979, mas com motor a gasolina, devidamente restaurado pela Fiat.
A comparação entre os dois é inevitável: para desenvolver o motor a álcool, a fabricante italiana deixou de lado o propulsor Fiasa de 1.050 cm³ e optou pelo 1.3.
Dele, são extraídos 62 cavalos e 11,5 kgfm, cerca de 10 cv a mais do que no exemplar a gasolina (hoje, um carro 1.3 pode entregar mais de 100 cv).
Dirigindo os dois modelos, é possível notar que o 1.3 confere maior agilidade ao 147. Longe de ser um velocista, sua aceleração de 0 a 100 km/h certamente é feita acima dos 15 segundos.
Arranha, mas vai
Mas não é preciso ter pressa. É hora de aproveitar o passeio pela pista de testes. A "viagem" no tempo começa antes de dar a partida, ao colocar o cinto – subabdominal – e ajeitar o único espelho externo, do lado esquerdo.
O câmbio de 4 marchas não tem engates precisos – é difícil engatar a primeira sem "arranhar". A direção, sem qualquer assistência, pode ser considerada leve, enquanto o volante de diâmetro generoso exige boa amplitude no movimento dos braços.
É difícil acreditar, mas o espaço interno agrada. O pequeno carro de 3,62 metros de comprimento tem apenas 2,22 m de entre-eixos e 1,54 m de largura. Ainda assim, os dois passageiros dos bancos dianteiros viajam com conforto.
No fim da reta, o velocímetro aponta cerca de 75 km/h. Hora de entrar na curva parabólica com ângulo acentuado. O 147 se mostra bem disposto, mas é prudente respeitar os 40 anos que ele carrega. Principalmente na hora de frear.
Ainda que possua arquitetura parecida com a dos populares modernos (discos na frente e tambor atrás), não há assistência na frenagem. Por isso, é preciso pressionar o pedal com força para obter o resultado desejado.
Ao final do passeio, é impossível não perceber o forte cheiro de álcool que invade a cabine. Esta é uma das origens do famoso apelido do 147 a álcool: Cachacinha.
Ascensão e declínio do álcool
Voltando novamente algumas décadas no tempo, os primeiros clientes do 147 a álcool foram empresas e órgãos governamentais – assim como aconteceu com os carros elétricos.
Isso porque era difícil encontrar um posto de combustível que tivesse álcool nas bombas. Em 1979, apenas 16 estabelecimentos podiam abastecer a pequena frota.
Conforme as fabricantes iam aumentando a oferta de carros a álcool, o número de postos subia. Em 1985, mais de 95% dos veículos novos eram movidos com o combustível vegetal.
Só que a situação se inverteu nos anos seguintes. Com a estabilização do preço da gasolina, as dificuldades financeiras das usinas e quebras de safra da cana, o álcool ficou bem menos atrativo.
Ao longo dos anos 90, carros novos a álcool eram raridade. E quem tinha modelos usados buscava converter o motor para poder abastecer com gasolina.
Uma nova reviravolta foi vista no começo dos anos 2000. Na época, se iniciou uma nova corrida para desenvolver motores que pudesse beber álcool e gasolina, os chamados flex.
A ganhadora, dessa vez, foi a Volkswagen, com o Gol 1.6 Total Flex de 2003. Novamente o álcool ficou "pop", com direito a carros de luxo podendo receber o combustível mais brasileiro que há.
E o futuro?
O etanol ainda é menos vantajoso do que a gasolina na maior parte dos estados brasileiros. Porém, o combustível é um trunfo na questão ambiental.
Considerando todo o processo de produção do combustível, até a emissão de poluentes dos veículos, ele é bem mais eficiente do que gasolina e diesel. Ele também é visto como uma solução brasileira aos veículos elétricos.
Até por isso, sua terceira fase evolutiva está batendo na porta. Nos próximos meses, a Toyota lançará o primeiro híbrido que pode ser abastecido com etanol no mundo: a próxima geração do Corolla.
Com ele, a marca promete entregar o híbrido mais limpo do mundo.
Em paralelo, a Nissan trabalha em parceria com a Unicamp, de Campinas (SP) no uso do etanol para carregar baterias de veículos elétricos.
A própria Fiat também aposta no etanol para o futuro. A marca está desenvolvendo um motor turbo de injeção direta que poderá ser abastecido apenas com etanol. O objetivo é igualar a eficiência térmica da gasolina. Seu lançamento está previsto para 2022.
E o "Cachacinha", do alto de seus 40 anos, se mostra mais atual do que nunca.