No Brasil e no mundo, economia patina nas fragilidades da globalização

Recente relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) trouxe dose dupla de más notícias para o País e aquele ou aquela que assumir a sua condução após o segundo turno eleitoral.

A primeira delas é a revisão para baixo da projeção de crescimento do Brasil neste ano, dos 2% previstos em maio para 1,2%, e a segunda, o alerta de que a expansão econômica global, importante principalmente para os países dependentes da exportação de commodities, parece ter atingido seu pico, com perspectivas de crescimento divergentes em todo o mundo e intensificação dos riscos.

Uma escalada de tensões comerciais, situações de aperto financeiro nos países emergentes e riscos políticos generalizados tem o potencial de minar as esperanças de um crescimento mundial forte e sustentável a médio prazo, alerta o organismo. A OCDE prevê que a economia global cresça 3,7% em 2018 e 2019, pouco abaixo dos 3,8% estimados em maio, com diferenças cada vez maiores entre os países em contraste com a ampla expansão observada no fim de 2017 e no início deste ano.

Múltiplos sinais, além daqueles contidos no relatório da OCDE, indicam a exaustão da política que associa liberdade sem limites para a iniciativa privada, em especial para as multinacionais, à derrubada das salvaguardas nacionais, combinação apresentada sob o rótulo neutro de globalização econômica como solução para o mundo cerca de 40 anos atrás.

Embora tenha possibilitado níveis de prosperidade sem precedentes nos países avançados e beneficiado centenas de milhões de trabalhadores pobres na China e em outros lugares da Ásia, analisa o economista Dani Rodrik, ela repousa sobre pilares instáveis. Ao contrário dos mercados nacionais, diz, que tendem a ser apoiados por instituições reguladoras e políticas domésticas, os mercados globais são apenas fracamente incorporados por instituições.

“Não há nenhuma autoridade antitruste global, nenhum credor global de última instância, nenhum regulador global, nenhuma rede de segurança global e, naturalmente, não há nenhuma democracia global. Em outras palavras, os mercados globais sofrem de governança fraca, portanto são propensos a instabilidade, ineficiência e fraca legitimidade popular.

Esse desequilíbrio entre o âmbito nacional dos governos e a natureza global dos mercados forma o ponto fraco da globalização. Um sistema econômico global saudável exige um compromisso delicado entre essas duas dimensões. Dê muito poder aos governos e você terá protecionismo e autarquia. Dê aos mercados muita liberdade e o resultado é uma economia mundial instável com pouco apoio social e político daqueles que supostamente ajuda”, resume o economista.

Só um mundo com muita liberdade aos mercados consegue encarar com naturalidade esta formulação de Percy Barnevik, presidente da sueca Asea Brown Boveri: “Eu definiria a globalização como a liberdade do meu grupo para investir onde e durante o tempo que desejar, para produzir o que quiser, comprando e vendendo onde pretender, atuando com o mínimo possível de leis trabalhistas e sociais e restrições formais”.

Protestos antiglobalização não faltaram, o maior deles em Seattle durante a conferência ministerial de 1999 da Organização Mundial do Comércio, mas não provocaram sequer um tropeço na marcha das empresas gigantes.

O modelo é apresentado pelos ortodoxos como a única solução, mas a experiência do Pós-Guerra prova que instabilidade e desigualdade exacerbadas não são inevitáveis. As primeiras três décadas depois de 1945 foram governadas pelo acordo de Bretton Woods, localidade dos EUA onde economistas e políticos das nações aliadas se reuniram em 1944 para projetar o sistema econômico após a Segunda Guerra Mundial.

O regime de Bretton Woods foi um multilateralismo superficial que permitiu aos formuladores de políticas concentrar-se nas necessidades sociais e de emprego domésticas ao mesmo tempo que possibilitaram que o comércio global se recuperasse e prosperasse, sublinha Rodrik.

“O gênio do sistema era que ele alcançava um equilíbrio que atendia a múltiplos objetivos admiravelmente bem. Algumas das mais notórias restrições aos fluxos comerciais foram removidas, deixando os governos livres para executar suas próprias políticas econômicas independentes e para erigir suas versões preferidas do Estado de Bem-Estar Social.

Os países em desenvolvimento foram autorizados a perseguir suas estratégias de crescimento específicas com restrição externa limitada. Os fluxos internacionais de capital permaneceram fortemente circunscritos. O compromisso de Bretton Woods foi um sucesso estrondoso: os países industrializados se recuperaram e se tornaram prósperos, enquanto a maioria dos países em desenvolvimento experimentou níveis sem precedentes de crescimento econômico. A economia mundial floresceu como nunca antes.”

O regime monetário de Bretton Woods acabou provando-se insustentável, analisa Rodrik, já que o capital se tornou internacionalmente mais móvel e os choques do petróleo da década de 1970 atingiram duramente as economias avançadas e ele foi substituído nas décadas de 1980 e 1990 por uma agenda mais ambiciosa de liberalização econômica e integração profunda, em um esforço para estabelecer uma espécie de hiperglobalização.

Os acordos comerciais estenderam-se além de seu foco tradicional nas restrições às importações e interferiram nas políticas internas, os controles nos mercados de capitais internacionais foram removidos e os países em desenvolvimento sofreram forte pressão para abrir seus mercados ao comércio exterior e ao investimento.

Ao empurrar o modelo de globalização do Pós-Guerra além de seus limites, prossegue Rodrik, economistas e formuladores de políticas negligenciaram o que havia sido o segredo de seu sucesso original. O resultado foi uma série de decepções. A globalização financeira acabou promulgando instabilidade em vez de maior investimento e crescimento mais rápido. Dentro dos países, gerou desigualdade e insegurança em vez de oportunidades iguais para todos.

Os sucessos do período, China e Índia, só foram possíveis porque esses países escolheram jogar o jogo da globalização não pelas novas regras, mas pelas de Bretton Woods. Em vez de se abrir incondicionalmente ao comércio e finanças internacionais, adotaram estratégias mistas com uma grande dose de intervenção estatal para diversificar suas economias. Enquanto isso, os países que seguiram as receitas mais padronizadas, “como os da América Latina ”, padeceram.

O sistema de produção global moveu-se, salienta o economista Erik Berglöf, do comércio de mercadorias e serviços para o de informação, com as corporações multinacionais tentando obsessivamente evitar vazamentos de propriedade intelectual para os concorrentes. Um caso bem-sucedido desse empenho das transnacionais no Brasil foi a aceitação pelo governo, na quarta-feira 19, da reversão da quebra de patente formalizada em julho para fabricação nacional do sofosbuvir, principal medicamento para hepatite C.

A decisão favorece a indústria estadunidense Gilead e proíbe a Farmanguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz, de produzir o genérico para “50 mil pacientes com hepatite C que dependem do acesso ao sofosbuvir para ter direito à vida”, segundo comunicado da instituição. Com a quebra da patente, recurso legal generalizado no mundo para atender ao interesse público, a Farmanguinhos baixaria o custo do tratamento de 84 mil dólares por pessoa com o produto da Gilead para 3 mil dólares e o governo economizaria 1 bilhão de reais nos gastos com o SUS.

O caso do sofosbuvir ilustra a força do rentismo, definido como a obtenção de renda a partir apenas da propriedade de um bem ou direito e mais conhecido nas suas formas clássicas de aluguéis, arrendamentos e ganhos de aplicações financeiras.

“As empresas não financeiras entraram no jogo do rentismo através de vários canais. Elas, sistematicamente, abusaram das leis de propriedade intelectual para alcançar a dominação do mercado, em vez de proteger inovações genuínas. Saquearam recursos do setor público por meio de esquemas de privatização em larga escala e assegurando subsídios públicos que raramente exigem que elas forneçam benefícios aos contribuintes. E se engajaram na manipulação do mercado de longo prazo usando recompras de ações para aumentar a remuneração dos executivos, e assim por diante”, acusam os economistas Stephanie Blankenburg e Richard Kozul-Wright.

O culto midiático às empresas persiste, entretanto, em especial quando se trata de indústrias situadas na fronteira do conhecimento. “É preciso parar de romantizar os agentes privados em indústrias inovadoras, ignorando sua dependência de produtos do investimento público”, clama a economista Mariana Mazzucato, considerada uma das maiores especialistas mundiais no assunto.

O celebrado empresário da manufatura avançada Elon Musk, “além de receber 5 bilhões de dólares em subsídios do governo, construiu as suas empresas SpaceX e Tesla graças ao trabalho da Nasa e do Departamento de Energia”, chama atenção Mazzucato.

Quase toda a tecnologia de ponta encontrada no iPod, iPhone e iPad da Microsoft é uma conquista muitas vezes esquecida e ignorada dos esforços de pesquisa e apoio financeiro do governo e das Forças Armadas, dispara a economista.

O único caminho para reviver as economias requer plenamente o setor público para reeditar o seu papel fundamental como investidor estratégico, de longo prazo e orientado pela sua missão, propõe Mazzucato.

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